Já que não encontramos acolhimento a qualquer dúvida sobre o fato de que a água parada apodrece, haja vista o inevitável determinismo em sua intermitência e em consequência das relações mecânicas que transformam a matéria sob a ação de agentes externos à sua essência, porque essa acontece à revelia e independente da nossa vontade, mesmo que tenhamos a intenção de lutar contra, ou mesmo intervir na sinergia intrínseca do mundo microscópico. A exceção ocorre quando a congelamos, adiando o processo de degradação, suspendendo o progressivo processo e evocando as palavras de Lavoisier que dizia: na natureza nada se cria e nada se perde; tudo se transforma. Apontamos, em oposição, às águas turbulentas que se movimentam e não param. Que seguem cursos como as águas do rio que consegue manter-se limpa, inodora e potável. Segue os seu destino e nos mostra, com seu exemplo, o que fazemos conosco. Com nossos problemas pessoais, intrapessoais, sociais e políticos.
Ficamos parados, escudados, batendo uma única tecla, repetida à exaustão, tornando a nota que fora bela num contexto ativo, algo monótono e cansativo. Uma monotonia reveladora do único tom possível porque incapaz de se recriar através da inserção de outros tons que não se prendam ao arrogante, repetitivo e monocórdio bordão.
Outras notas são possíveis e necessárias à formatação de novas combinações e harmonias. A tecla repetida em forma de bordão é a mesma água que apodrece e não se renova. São semelhantes quando estancam quaisquer chances de acrescentar frescor ao calor das discussões.
Apodrecida a água cheira mal. Junta, dentro de si, o que há de pior, como a tecla que se repete monotonamente.
A água mata a sede, limpa os corpos ou apodrece e contamina. A tecla repetida, em combinação com outras, produz um infindável repertório de sons que, em sua harmoniosa ludicidade, podem encantar e motivar a imaginação e o olhar, através da audição.
Tudo tem a sua relatividade. A água parada nos patrocina, perfurando a memória, o bordão da putrefação. Traz lembranças de outras formas de seu uso, como quando os torturadores a usavam em pingos contínuos sob as cabeças dos torturados. Até que o frescor se transformasse em dor. Ou quando o algoz, ao se utilizar de uma única tecla, transformava a ilusão de um som, repetido à exaustão, em imposição. Tanto um quanto o outro simulavam e simulam que ser verdade o que verdade não é, os frágeis critérios de nossas escolhas diárias, desnudando os intrigantes dedos que nos apontam o quanto somos responsáveis pelas imagens que nos ferem os olhos, pelos sons que nos estouram os tímpanos, pela água insalubre que somos obrigados a beber.