Capa do livro de poemas “O Soneto de Pandora” | Arte: Artur Madruga
Capa do livro de poemas “O Soneto de Pandora” | Arte: Artur Madruga

Caro poeta José Couto,

Vi, li e reli. Tudo perfeito, tudo em seu lugar. Nem sei te agradecer o privilégio de fazer parte desse teu fabuloso trabalho. O teu livro está um luxo, uma riqueza. Um escândalo! Não tenho no que mexer, acrescentar ou modificar. Chego a estranhar minhas próprias palavras impregnando as páginas dele. Quanta emoção estava envolvida quando escrevi aqueles textos sobre o teu trabalho. Gostei dos quadros, da capa, da união que fizeste do Pandora com a Impermanência. Acho que acertastes em cheio. Com certeza será um grande sucesso. A poesia tem que fazer isso que fizeste: conclamar o leitor aos contornos visuais entre o texto, o contexto e o plástico, para aprofundar a experiência. Parabéns. O fundamental está pronto. A cria está pronta para ser parida. O mundo a espera. Deixe partir, faça o seu livramento. Deseje boa sorte ao teu fruto, porque é só do que ele precisa. O restante ele te levou, que foi a marca do teu talento e a chama da misteriosa beleza da vida.

Abraços. Artur Madruga.

Sonata Miltoniana

Para a amiga Nadia Nunes

Mais que pensar
a condição humana
hoje eu quero o cais
deixar-me flutuar

Um olhar lacaniano:
aquele que fala
fala a alguém
mas de si mesmo
para ele mesmo

Outro na revolução freudiana:
a transmutação da sexualidade
a visão crítica
da moral burguesa

Mais que teorias
desejo encontros e despedidas
sertão das águas san vicente
tudo que você poderia ser

Caxanga sacramento cio da terra
yauaretê ao que vai nascer anoiteceu
cálix bento Caicó em nome de deus
e daí? Fé cega faca amolada frenesi

Mais que interpretar
a experiência vivida
meu propósito é a travessia
a terceira margem do rio

O milagre dos peixe
nos bailes da vida volver a los 17
eu caçador de mim
conversando no bar
outros outubros virão
canções do novo mundo
certas canções que ouvi
e que ainda reverberam

Me chamam para revivê-las
ponto de encontro a lua girou, girou
miltons mil tons mistérios
paixão e fé amigo amiga

Nada será como antes
Solo le pido a Dios
se você pegar o trem azul
o que será que será?

José Couto

*

Solilóquio

“A gente não morre. Fica encantado”.
Guimarães Rosa

A canção ecoa no precipício
Seu canto ermo e triste,
quer celebrar o frio.

Seu desejo é levar-nos,
fazer a travessia ou nos perder
em escuro labirinto.

Sopra tênue gelado fio de aço
em meu ouvido
Se diz irremediável.

Nenhuma certeza ou esperança a move,
Sua música entoa o canto letárgico,
Inevitável.

Tempo sem tempo marcado.
Ulisses, herói sombrio a vaguejar.
O sertão: redemoinho, encruzilhada.

Morte: odisseia épica e nos reinventar.
Somos seres espirituais
retornando ao lar.

José Couto

*

Tapes

O índio gritou mata
anu-branco pedra
Pampeanos água

A noite soprou o vento Uruguai
Canário-da-terra colheu sementes
Painço grão de bico gramíneas

Sanhaço tesourinha tico-tico
cantam o nativo híbrido
esverdeados sossegando o anoitecer

Índio esbravejou fruta raiz
seu canto de erva lagoa dos Patos Jacuí
Guaranis o tronco tupi

Tem-tem-coroado, Guaratá assovio
Pituã, Triste-vida, rolinha Picuí
Gês Kaingangs Nonoai Iraí.

A terra calou mata
O índio silenciou água
Anu pássaro Guanambi cruzou o Prata

A pradaria amanheceu orvalhada
Depois o sol apaziguou
Pé no chão a trilha caminhada.

José Couto

*

Namorados

“Para o desejo do meu coração
O mar é uma gota”
Adélia Prado

Para Preta Clarice

Amor; raro e vago paradoxo.
O retrato queima o pensamento,
o imprevisto transpassa a distância
e o trânsito não anda.

Acorrentado na cidade imaginária
te ligo e aviso:
amor quanto mais te desejo,
mais o universo conspira.

Reinvento, me esforço, viro reviro
às avessas, sobretudo apaixonado,
insisto e ganho as ruas.

Os dedos entrelaçados, te guardo;
amparados, as almas tocando-se,
seguiremos juntos o intangível.

tempo, que nunca finda. Rememora,
nos perde em intricados espelhos.
Ao revés de usa vórtice, o amor

nos aproxima e depois
transcende. Redemoinho girando
girando…girando…girando…

José Couto

*

Meu silêncio

Meu silêncio germina
Sementes de não idioma

O poema quer existir
Em nagô

Tupi-guarani
Yorubá
Sânscrito

Eu quero silenciar
Mas a oralidade poética
De meus ancestrais
Desencadeiam o fluxo e refluxo

De toda odisseia.

José Couto

*

Autorretrato

Comecei a
desenxergar-me.
Face ao espelho
Vislumbro o tempo
já desfocado
de mim.

Um profundo assombro
sutis desertos
águas turvas
o desejo e o perfil de ser.
Amalgamam-se na imagem
que não se reflete.

Ampliam-se os horizontes,
os sentimentos.
Quase translúcido
toco com as pontas dos dedos
o poema.

E, como um milagre,
a linguagem começa a multiplicar-se.

José Couto

* Sarau – Poesia na UFSCPA – Especial José Couto: