Se minha coluna fosse publicada às segundas-feiras, a desta semana certamente atrasaria. A sensação que me dominou depois da votação de domingo foi a de que algo ou alguém havia me roubado as palavras. “Inefável” é uma palavra que se usa para aquilo que escapa às palavras. Não consigo deixar de achar graça em existir uma palavra para categorizar justamente as palavras que não existem: é prova de nossa necessidade de verbalizar tudo, afinal, a interpretação clama por palavras. E foi de palavras (como demonstra o gráfico aqui do jornal O Alvoradense e também os de outros jornais), palavras repetidas à exaustão até quase perderem o sentido, diferentemente interpretadas e violentamente disparadas, que se deu nossa derrota no domingo.

Falo “nossa” aqui porque creio (talvez ingenuamente) que toda pessoa gostaria de ver seu voto respeitado, fosse ele vitorioso ou não. Porque se hoje a democracia é retorcida para favorecer um grupo A, amanhã pode ser igualmente retorcida a favor do grupo B ou C. E isso é lamentável, porque instaura uma vulnerabilidade da qual ninguém consegue se proteger. Ora, se o voto, que é uma das poucas ferramentas de que dispomos para fazer nossa voz ser ouvida, pode ser descartado num jogo político comandado por réus, que possibilidade nos resta?

Foi por não saber como responder a essa pergunta que me faltaram palavras. Eu não consigo verbalizar o que está acontecendo. Eu não consigo interpretar. Não é sem dor que escrevo. Uma dor que vejo compartilhada por todas as pessoas que se importam (minimamente que seja) com os direitos que só são possíveis num estado democrático – criticar a presidenta é um deles, inclusive – e que veem esse estado ameaçado por pessoas que usam de seu poder de representação para destilar discursos de ódio e opressão.

Meu estômago não foi suficientemente forte para assistir à votação até o final, mas, até onde consegui aguentar, contabilizei pelo menos três deputados – homens – que finalizaram suas falas com “tchau, querida”. Não imagino esse mesmo tratamento dirigido a um homem: como já falei, boa parte das críticas dirigidas à presidenta são muito mais misoginia do que discordância política. Tivesse parado aí, ainda estaria suportável. Mas a sequência da votação (que só acompanhei depois, pela Internet) levou a pessoalização e a misoginia a um nível que eu (mais uma vez, talvez ingenuamente) não imaginava ser possível: aquele deputado (vocês sabem quem) homenageou em sua fala aquele torturador (vocês também sabem)… e foi aplaudido. Na casa do povo.

Uma apologia ao regime mais desumano a que nosso país já foi submetido foi aplaudida numa sessão que votou pela continuidade do processo de impeachment de uma presidenta democraticamente eleita contra a qual não há denúncia de crime de responsabilidade fiscal – de nenhum crime, na verdade. Como cidadã, como mulher e como eleitora, não consigo elaborar essa realidade em palavras.

O “tchau, querida” dos deputados, que se referia à presidenta, imediatamente deslizou on-line para sentidos vários. O que adoto aqui, numa perspectiva trágica mas infelizmente realista, é o de democracia. Quando esse tipo de atrocidade acontece sem quaisquer consequências para seus responsáveis, quando discurso de ódio é lido como opinião, quando “minha família, minhas filhas, minha esposa” é o motivo do voto de alguém que deveria representar os nossos interesses (não os próprios), quando uma manobra mal intencionada de natureza político-partidária passa por cima do voto popular, estamos frente a uma democracia moribunda, desacreditada, golpeada.

A destituição da presidenta, que não se deu após a votação (apenas uma etapa do longo processo), já está sendo amplamente comemorada por quem torce por isso. Não me sinto precipitada nem deslocada, então, por desde já lamentar e me despedir da democracia. Talvez não hoje, talvez não amanhã, mas, pelo andar da carruagem, em algum momento, ela, do modo como hoje a conhecemos, terá ido embora.

Tchau, querida. Sentiremos saudades. Sentiremos muito.