*

Consuelo Rezende: voz de inconfundível originalidade. Impregnada da assombrosa aridez humana, e insuportáveis simulacros de verdades poéticas. Sem nunca perder a intensidade da entrega, e a comovente beleza, que celebra a vida.
José Couto
*
A poesia de Consuelo Rezende é sangue e coração. Tem a dureza da pedra e a delicadeza da flor. É sol e temporal. Com muito fôlego e crítica social, a poeta discorre também sobre o amor, suas sutilezas e tristezas nas entrelinhas da vida de todos nós.
A poesia de Consuelo Rezende é sangue e coração. Tem a dureza da pedra e a delicadeza da flor. É sol e temporal. Com muito fôlego e crítica social, a poeta discorre também sobre o amor, suas sutilezas e tristezas nas entrelinhas da vida de todos nós.
Chris Herrmann
Escritora/poeta e musicista
*

OBSCENO

Alisei um
poema
extenso
com o próprio
corpo.

Depois o enchi
de dobras
para me colher
noutra rua.

Em bis.
Depois
em quatro.

Quase ficou
de oito.
Mas não
me cobriu.

O poema
é assim.
Ora faz luxo
ora pro-lixo.

Ora
de oito
faz
bis-coito!

Consuelo Pereira Rezende Do Nascimento

*

JUREI NÃO SÓ CHORAR PELA ÁFRICA

De lá do muro
de lá do morro
de lá do pacífico
de cada porto
dos podres poderes
das tetas das mães-pretas
O vale das sombras
é zona de conforto!

A pressa trespassou-me
as meninas dos olhos
e os meus pés tropeçam
em lixo humano.
Dirás pr’eu me erguer
com um Brian Atwood
e recobrar a visão
com Dolce & Gabbana.

Que o chifre da África
não está no pacífico
e os Emirados
ficam logo ali.
Quiçá os Jardins Suspensos
Palais de Louvre!!!
que ainda
é Belle Époque em Paris!

Despicienda tua apoteose
ou minha excruciação
na lista de “As Dez Menos”!!!
O engenho não é tocado
por grandes homens
mas pela grande força
dos pequenos!

Dirás
que o meu tardio
voto de pobreza
não passará o camelo
no fundo da agulha.
Nem devolverá as asas
agouradas dos anjos
ao seio tísico de
insontes cambulhas!

Que só, não tombarei o Muro
das Lamentações;
e cada um nasce
com o seu troféu.
Ainda anuis, só compartindo
a pior foto:
“Antes os dedos
que o anel”!

O irônico engano
dos anônimos
é legar seu potencial
a titulares.
Serás o ralo
do calabouço
ou a gota
a brandir os mares.

Se não vais à Somália
Etiópia, Brasis,
até soberba
a fome aceita.
Começa em tua rua
transforma-te junto!
A virtude é que põe
os zeros à direita.

Consuelo Pereira Rezende Do Nascimento

*

HEROÍNA NÃO É PÓ

Depois do frio
depois da fome
da cobrança
do hematoma
da creche
do metrô
do assalto
Maria de Fátima
ainda chegava cedo.

Vinha cuidar dos meus
e descuidar dos seus
menores que os meus.

Constitucionalmente desiguais
seus iguais
lavavam carros com solventes
calcinhas
enfermarias
motéis
e orgasmos múltiplos.

Apanhavam
as cítricas
o fumo
o sol
os humanicidas.

Puxando o lixo
rasgando o asfalto
cortando a cana
e os membros.

Sofreram
assédios
infâmias
pedofilia
sociofobia
abortos
tétano
cânceres
enfizema
paralisia
desídias.
Insanidade pública.

Meus heróis
não morreram de overdose!

Consuelo Pereira Rezende Do Nascimento

*

PÓ-ESIA
para Jose Couto
Nascer é muito curto

Ser semente não basta.
Nascer é apenas sublime.

Viver é irromper-se.
Olho d’água estourando
a barriga da terra
para ser mares.

Mágica de Poesia
contemplando o grão
num quase estelionato
com plateia consciente.

Cientes da inexistência
de pássaros no chapéu,
compram o mesmo céu
que trouxeram nos olhos.
Olhos D’água.

Nascimento e morte
são do mesmo tamanho.
“Viver é comprido”*
já o disseram antes de mim.

Só não passará o camelo
no fundo da agulha.

Viver é ser o passarinho
arrancando o céu de cada um.

Vida é o extrato.
O pó-esia!

Consuelo Pereira Rezende Do Nascimento

* “Viver é muito comprido” – do sagrado Guimarães Rosa.

*

POENTE
Ainda há pouco
a aurora a açulava
feito criança atrasada
para a ciranda.

Bem-te-vis teclavam
sonhos possíveis no parapeito
aparando o sopro dos bambus.

Beija-flores polinizavam
entre Os Dedos de Deus
entabulando as páginas da Criação.

Cães e quero-queros advertiam
sobre a Hora de Amanhe-Ser.

Ainda há pouco
antes de o sol mudar o humor
indo espiar tudo de cima,
mamões, romãs, jabuticabas,
pêssegos, mangas, amoras
confirmavam o rumo:
“o que se planta se colhe”.

Ainda há pouco
ela apascentava o rebanho
com parcialidade da lua
no rastreamento
das ovelhas desertoras.

Há pouco
exibia o suco dos frutos férteis
babava pela vóternidade
investia em pro-ventos
e contava nas duas mãos
os anuênios para após-entadoria.

Todavia o poente
tão inescusável e veloz
da travessia
sabotou-lhe o alvorecer.

Na calçada
da Casa de Abrigo
doba novelos
recontando as ovelhas
e as voltas do mundo.

Tecendo o Fiado
de tudo que a vida
lhe cobrou “À Vista”.

Consuelo Pereira Rezende Do Nascimento

*

FÉ-CUNDAÇÃO

Não te superestimes
se eu te amar amanhã

mais que agora;
hoje a convenção pode até
conhecer minha morada
mas não me habita.

Deixo a menina dos olhos
projetar a estrada
e o coração
escolher o meu erro.

O sucesso é visão;
a derrota,
um ponto de vista.

Facilmente
Deus tirou a carne do Barro;
e, há três milênios,
tenta tirar o espírito de Adão.

A fé semeia
o tempo fé-cunda.
Quebro a minha rocha
por um grão humano.

Do céu todo dia
despenca um deus.
Do amor, toda hora
sobe um anônimo!

Consuelo Pereira Rezende Do Nascimento

*

MARIA BONITA

Marcada de mato
matança, an-dança
Maria Bonita, Boa, Bela
reencarnou-se
na fa-vela.

Feito marruá rondou
relutou
achou o des-tino
verniz.
Gargantilha de sedém
adornando a cicatriz;
um turbante de barbante
contra as maçãs
do paraíso errante;
e blush espúrio
angulando o queixo puro.

Ainda se sentindo
onça
tirou a carne
no ba-tom geringonça;
E a brejeirice,
com lápis grosso
no olho, sobrolho,
sobrosso.

Excluída, aluída
a sensa-tez
a alternância ainda
ven-deu a sua vez;
um capelo nos ca-belos
almo-fadas coladas
mais o anel de caveira
para a sexta
sem feira.

Toda-via se achando mais
bicho, lixo
pensou em transmutar-se
além do meio corpo.
Uma minissaia, tocaia
tattoo
na tomara-que-caia
e mais, não vos digo:
um piercing
infamando o UM-bigo!

Ainda na via
de mão única
pensou num insulto
mais complexo.
E ameaça a caveira
do seu indica-dor:
“Um terceiro sexo?!”
Drag Quenn
re-bolando para o bullying!

O grupo a-parece-lhe
nova-mente
acusá-la de Mulher
incle-mente!
Inobstante a dor
e impasse
Maria Bonita jamais
daria a outra face.

Bolada de moda
de modos, de merdas…
afogou no bar-raco
gemidos de flor,
arrancou os invó-lucros
das perdas;
exceto o inseto, abjeto
como quem reconhecesse
o afeto
de pretéritas carnificinas.
Dupla pele da sina.

Desnuda e acompanhada
da hospedeira
atordoou a escola
a escolha, a escolta;
“ou por amor ou pela dor
humanidade escrota!”.

A hospedeira da favela
aterrorizou os laços
mais que todas as armas
do cangaço.
E ainda viu Lampião
dom-minando o clã
da geração pagã!

Consuelo Pereira Rezende Do Nascimento

*

HOMENINO

Um menino brinca
ninguém duvida.

Um menino chora
ninguém se constrange.

Um menino xinga
ninguém se atinge.

Um menino agride
ninguém revida.

Um menino esquece
ninguém se lembra.

Um menino se exibe
ninguém se encolhe.

Um menino ri
ninguém se acusa.

Um menino é sincero
ninguém se suicida.

Um menino tropeça
ninguém derruba.

Um menino reclama
ninguém anota.

Um menino se engana
ninguém castiga.

Um menino pede
ninguém nega.

Homenino cresceu!…
Crucifica-o!

Consuelo Pereira Rezende Do Nascimento

*

Vídeos poemas

Pequena

Não pense meu rei
que não fui tua
a que te dei
conti-nua
ora muitas vezes
ora nenhuma

não sou sua lã
nem lã-terna
fui a saída
para a tua rua
voltei à vida nua
valsa eterna.

A única bela
que se esqueceu
última donzela
do camafeu.

Eu sou a cor
que destoa

eleja outra cabeça
para a tua coroa

morro de medo
de vida boa.
Virei leoa.
Música Donalto Santos
Letra Consuelo Pereira Rezende Do Nascimento

*

Poema MINIFÚNDIO de Consuelo Pereira Rezende Do Nascimento
Montagem e edição poeta Christina Herrmann

*

Poema na voz de Adriana Aneli Costa Lagrasta

A LAVADEIRA DAS SEGUNDAS-FEIRAS
Ela entra sem asas, pela porta dos fundos,
que nem, nem todo mundo.
Pega a xícara mais rasa, toma café preto e fumo.
E fica de bem com o consumo.
Põe o avental, sem trocas; ajeita os peitos
– que mantêm mais de dúzia de negrinhos, a despeito!
e segura firme no canto da boca
o seu pito, mais certo que qualquer direito.
E pega a trouxa. Muita ou pouca.
Ao som de sua desentoada cantiga,
desvencilho-me de os pesadelos:
– bom dia!… bom dia, amiga!…
Repuxa o pano que doma os cabelos
hirtos e brancos
– por os quinze filhos, inglórias e trancos.
Para em meus olhos como que escarafunchando
a felicidade de uma outra gente.
Me ensaboa. Me põe de molho.
Me enxágua em tempo diferente.
E me põe no arame, feito sacramento,
depois me retorce feito uma sicrana.
Repete o café e o adiantamento,
volta pro tanque. E me engana…
No tom da roupa, cheiro e tecido
me advinha o humor da semana.
Tecendo elogios se usei vestidos.
E vai pela casa, procurando mais peças,
coincidindo com o quarto, troca a minha cama.
Investiga se os lençóis cumpriram a promessa
(acendendo a própria chama).
“Algum cozimento!” promete a panela
– no seu dia de carne, ela está banguela!
A moça da cozinha anuncia a refeição,
ela vai à forra, em sua companhia:
chegou a sua hora de arroz mais feijão…
– pior é que ela não lava aqui todo dia!
Não é mãe de Jesus, mas chamam-na Maria,
rima com luz, com poesia.
É majestade lavando roupa, repito, muita ou pouca.
Antes dos quarenta, sua vida já passou.
Se era miss, ninguém a selecionou.
Pulsando na veia a coragem por os seus
separa-lhe as sobrancelhas o sorriso de Deus.
Ela é quem me disse (e não é poeta):
“cada um no seu canto, chora o seu tanto”.
Dona Maria – que agonia! – é analfabeta.
Do livro “Em Tempo” – edição 1996

*

A FORMIGUINHA – Na interpretação da poeta Consuelo Rezende

Consuelo Pereira Rezende do Nascimento nasceu em Mineiros (GO), em 1957, filha de Amada Expedita Pereira Rezende e Sebastião Franklin de Rezende.
Seus contatos com os livros foram incentivados pela mãe mineira, poetisa anônima, que instruiu, preliminarmente, os seis filhos, obcecada por lhes oferecer outros horizontes, além do cenário da Serra Luminosa (fazenda onde residia a família). Revela: “… até a infância, não tínhamos rádio; nem TV; nem bonecas, senão as que criávamos, ou nós mesmas, de tão bordadinhas por minha mãe… Acolá dos baús de Romançários, fascinantes, do vô Sinfrônio, as cirandas, as belas estórias que mamãe nos contava, lia ou inventava, sob um céu mágico. Consuelo foi assistida por professores religiosos/filósofos, desde o palco do Ginásio Santo Agostinho (GO), onde recitava os próprios versos aos nove anos de idade.consuelo
Protagonizou e dirigiu peças de teatro, até o curso de Letras realizado na FISTA – Faculdades Integradas Santo Tomás de Aquino, encampada pela UNIUBE, onde os acadêmicos exerciam papel ativo no teatro “Céu Aberto” e no jornal “Sagarana”, fundados por sua Turma.
Em razão das funções de confiança no Serviço Público Federal, residiu em outras cidades e se casou, em Uberaba, com o médico-veterinário, José, tendo três filhos: Kátia, Tiago e Marina, dentre adoções.
Cursou Direito pela UNIRP – Universidade de São José do Rio Preto (SP), em 1996, e Pós-Graduação, em Direito Público e filosofia do Direito, pela Universidade Católica de Uberlândia, em 2004. Também articulista, desmembra-se noutros ramos: adoção, área jurídica e romance.
Sua poesia, ou prosa-poética,é um lúdico de filosofia, metáfora e trocadilhos, e o amor é fenômeno da natureza.
É Membro da União Brasileira de Escritores, desde 1997, e da Academia de Letras do Triângulo Mineiro, Cadeira nº 10, dentre outros seguimentos.

Obras publicadas:
Mundo Esse: Poemas-Ensaio, 1987 Em Tempo, Poesias, 1996 Narco-íris, Poesias, 2007

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