A subjetividade do Cavalo de Tróia

A história conta que um soberano ganhou de presente um enorme cavalo de madeira, como prova de amizade ou de trégua entre as disputas que os lados opostos mantinham. Acreditando em Papai Noel, embora não fizesse parte das tradições da época, ou por não acreditar que não existe almoço de graça, aceitaram o presente do inimigo e o colocaram no pátio do castelo. À noite, enquanto os soldados dormiam, de dentro da enorme barriga oca do animal saíram os soldados do bonzinho inimigo, matando-os em pleno sono e abrindo os portões para que o resto das tropas inimigas entrasse e liquidasse com o esperançoso e iludido soberano que tanto lutara para se defender. Essa alegoria chamada Tróia, pode tranquilamente servir de analogia a tantas coisas que estão subjetivamente contidas na nossa atualidade.

Poderíamos pensar na nossa própria história recente para averiguarmos que as coisas não mudaram tanto. Por exemplo: no período da ditadura militar, pensar livremente era um ato subversivo. Estar de posse de muitos livros suspeitos também. Muitos jornais substituíam colunas críticas por receitas de bolo, porque eram censuradas. Isso acontecia com a música, teatro etc.

Hitler mandou incinerar muitos livros na Alemanha por considerá-los perigosos ao sistema. A Biblioteca da Alexandria foi destruída por tais motivos após uma grande invasão.

Uma cidade no Rio Grande do Sul, que não vou citar o nome, eliminou livros das bibliotecas escolares que já tinham 10 anos, sob a justificativa de renová-las. Muitos destes livros foram para reciclagem ou jogados na rua. Uma espécie de higienização das bibliotecas de escolas públicas. Todos se calaram e, de certa forma, aplaudiram a atitude. Pode não ser nada, mas para quem dá importância à leitura, se constituía um crime à formação dos estudantes e ao bolso do contribuinte.

Essas proibições à época da ditadura militar, tirando os cursos de filosofia, sociologia e francês, por exemplo, dos currículos escolares, foi o verdadeiro Cavalo de Tróia do nosso país. Conseguiram um povo que não consegue interpretar um texto, mesmo estando dentro de uma Universidade, como alardeia a mídia. Quem diz o que um povo inteiro deve pensar são os inacreditáveis programas das nossas televisões que pautam suas atividades por baixo, como se a barbárie, a falta de ética, o vitimismo e o oba-oba fossem o foco de uma sociedade que se pretende construir sob as bases do respeito e cidadania, da diversidade e do livre arbítrio.

Não é de se admirar que o Novo Cavalo de Tróia já tenha dado sinais de que vai abrir a barriga para soltar os seus soldados. Eles arrancarão de vez a voz de uma nação que se encontra inerte e perdida. O Cavalo de Tróia já está no pátio do país quando vereadores de uma cidade aprovam um desagravo a uma das maiores pensadoras de nossos tempos por uma frase de uma prova que visa a reflexão e o debate. Visa tão somente discutir coisas importantes para sairmos do atoleiro. Sua obra certamente eles desconhecem. Não devem saber que sequer ela vive mais. É lastimável quando Simone de Beauvoir não está mais viva para se defender. Talvez não o fizesse se estivesse viva. Talvez esboçasse um sorriso ao perceber que o relincho não é mais do cavalo, que o protagonismo de tais sons tenha mudado para um pequeno segmento de outra espécie, a dos humanos adjetivados de fundamentalistas.

O perigo desse novo Cavalo de Tróia é se manifestar com maior gravidade, porque agora está encoberto pelo manto de uma sacralidade que busca uma outra forma de ditatura e poder, como tentou nas décadas de 50 e 60 a famosa “Tradição, Família e Propriedade”. A história se repete e a subjetividade de Tróia não está tão invisível assim.