“O poema é mediação: graças a ele, o tempo original, pai dos tempos, encarna-se num momento. A sucessão se converte em presente puro, manancial que se alimenta a si próprio e transmuta o homem. A leitura do poema mostra grande semelhança com a criação poética. O poeta cria imagens, poemas; o poema faz do leitor imagem, poesia.”

Octavio Paz

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Arrebatamento íntimo

É vidro que se parte
Ânsia de dizer-te
ou morrer apaixonado
e doente, de madrugada.
É na varanda
que meu pai passeia
Tateia os móveis
e senta na cadeira silencioso.

Estava para começar a sessão da meia-noite
quando eu senti os nervos
cederem na pele
e voltei a fumar
Este foi meu primeiro êxtase.

José Couto

Vídeo poema interpretação o poeta Carvalho Jr.

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Ourivesaria

Tal qual um ourives
esculpir a palavra
lavrar o verso
ampliar suas possibilidades.

Deseducá-la se necessário.
Reordenada, emite novos sons
Vocálicos, múltiplos significados.

A palavra renovada,
Incrustada de beleza rara,
Transmuta-se
em poema bruto.

Harmoniosa sinfonia
a recriar-se no leitor
a qual se destina.

Jose Couto

Vídeo interpretação poeta Antonio Torres

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Ave-Maria

Certa manhã vi o rosto de minha irmã
Reverberar na imagem não refletida
Do espelho.

Cotidianamente reenterramos
Nossos mortos
Impossível sepultar seus reflexos
A olência, os objetos taciturnamente
Imóveis, aguardando que alguém
Os adote, para continuarem existindo.

Essa manhã amanheci águas
Os olhos vertendo memórias.
Vi o perfume de minha irmã
Lá fora.
Habitava um pássaro em voo.
Abracei sua solidão
E a dos homens é
Incomensuravelmente maior.

Desde então, o desamor tornou-me
Líquido, deságuo em mangues,
Rios perenes subterrâneos, decompondo-me.
Certa manhã que virei águas
Rio fluindo, lavando almas.

E os mortos sem reflexos, igual
Ao de minha irmã, em seus intrincados
Labirintos, aguardavam a chuva torrencial.

José Couto

Vídeo poema interpretação da estudante de teatro Brenda Moonchild

*

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O Argonauta

Porque a manhã
nítida e inexata
vazou seus vapores
de cheiro do acaso
em tua púbis

Porque essa tarde
infinitamente flutuante
de transbordamentos essenciais
captou a leveza fugaz
dos personagens de Chagall
em teus olhos

Porque no fim dessa noite
o dilúvio de silêncios
impregnou tua pele de uma sede
imperceptível e desproporcional

Porque desejei com o peito em palpitações
e a sensação de mar em repuxo
tragando-me

Soprar em teu sexo um rugido
urro silvo ou berro: salva-me

antes de submergir

José Couto

A poeta Lourença Lou interpreta o poema