Costumo lembrar, quase sempre, que nunca sabemos em que os nossos atos se nos transformarão vários momentos do percurso de nossas vidas, em relação às nossas atitudes com os outros e conosco, em primeiro lugar. Por essa razão é melhor oferecermos sempre o melhor gesto, por mais ingênuo que ele possa parecer.

Esse posicionamento revelou-se, por muito tempo, por duas características que me perseguiram e que talvez seja o motivo de minhas reticências na atualidade. Antes de citá-las, evidencio o fato de rejeitar relatos confessionais, por considera-los inconvenientes e cansativos. Para quem escreve e para quem lê. Esse último porque em nada acrescentará ao leitor sobre ele mesmo, a não ser estabelecer comparativos e pontuar escalas que podem ser descartadas pela simples eventualidade de sua fluidez ou corrosão; inutilidade ou exacerbação egocêntrica.

É evidente que essas duas características, ainda não reveladas, devam ser citadas porque margeiam e pautam toda e qualquer opinião que quem vos fala possa formular. Em verdade, essas características são dois elementos comuns a um grupo de pessoas que, em certa época da nossa história contemporânea foram chamadas de “outsiders”, ou seja, “os desviantes”, por Colin Wilson. O primeiro elemento refere-se a não identificação com os valores desta sociedade; o segundo elemento afirma que manifestam um anseio de criar a sua própria forma de viver.

O que corrobora afirmação para justificar determinado posicionamento crítico, e não desculpá-lo como certamente poderá parecer aos olhos dos absolutistas, é a intensa e silenciosa troca que mentalmente faço com os escritores mortos e vivos que me são queridos. Deles herdo a perplexidade, como essa teoria de Colin Wilson, cujo insight que me ocorre à sua fala, me traz um autor sempre presente quando observo as alegrias e os equívocos dessa vida, chamado Hermann Hesse. Antes de Colin, ele já povoava minha adolescência com seu Demian e o sinal de Caim. Demian era um outsider, sem dúvida. Demian não só percebia a sua não identificação com os valores sociais como em meio às suas constatações ansiava por criar sua própria forma de viver. Esse livro, que fora importante para a geração europeia de pós-guerra, mereceu um conjunto de músicas criadas por Carlos Santana, um brilhante guitarrista, que lhe dedicou o CD Abraxas. Hesse, para minha alegria de leitor, não terminava a saga de Demian em um único livro. Continuava com seu personagem outsider em O Lobo da Estepe, quando o rapaz da narrativa se tornara um adulto. Hesse, como tantos outros escritores viraram meus fantasmas, meus visitantes durante meus sonhos. Não havia como escapar dele e dos outros que me envolvera, como Clarice Lispector, Caio Fernando Abreu, Nietszche, Machado, Fernando Pessoa, Mário Quintana, Júlio Cortázar, Garcia Marques etc. etc. etc..

E desses meus outsiders, visitantes dos sonhos, parecem carregar consigo essa obsessão pelas palavras referidas anteriormente. E com tal crueldade que, vez em quando, me acordam no meio da noite em suas estranhas casas sonolentas, folheando seus livros empoeirados, amassados, de autores desencarnados que tanto amei.

Estranho, muito estranho, é o fato de que eles, em suas fantasmagorias, mostram-me trechos em seus livros que nunca li. São parágrafos novos, deliciosos, que me alegram enquanto distante do real. Saboreio cada passo de seus ritmos e linguagens conhecidos, familiares, como se uma novidade distinguisse a névoa que a tudo acoberta. Guardo-os, esses novos livros, em caixas, como na vida real, para lê-los depois.

Invento o que disseram ou invento-me no que me digo, recriando os loucos sonhos ansiosos por serem sonhados? Como os títulos em suas capas duras, que nunca existiram e agora me são raros?

Sei que jamais os lerei pela tênue membrana que me separa dos sonhos, deles e de seus livros, que desaparecerão, ao acordar, sentindo ainda no tato as suas superfícies como as maiores riquezas. Acordar assim é doloroso nessa fria madrugada de julho, porque venta muito. Todos somem, evanescem. Que sorte, estou sorrindo. Tenho certeza de que estão providenciando alguma metamorfose. A próxima noite promete. Aguardo-os, meus outsiders preferidos.