No dia 13 de maio, quando o golpista Michel assumiu interinamente a presidência, houve uma manifestação contra o golpe em Porto Alegre. Organizada de última hora, aconteceu com um número pouco expressivo: pelos meus cálculos, éramos cerca de duzentas pessoas, inicialmente reunidas em frente à sede do PMDB e depois percorrendo as ruas da Cidade Baixa. Em meio aos gritos de “Fora, Temer!”, encontrei um colega com quem conversei brevemente: eu disse que estava lá apenas pra constar, porque sabia que não ia servir de nada e que tudo seria decidido no canetaço; nossa única saída, se houvesse, seria a violência – já sabendo também que a repressão viria numa medida muito maior. Ele me perguntou por onde andavam os black blocs agora que pareciam tão necessários (alguém sabe por onde andam?). Concluí dizendo que aquilo nos serviria como história pra contar, pra deixar algumas cicatrizes de guerra das quais falaríamos com orgulho depois, mas que efetivamente não mudaria nada.
Minutos depois, nos perdemos quando a polícia arremessou a primeira bomba de gás – primeira daquela manifestação e também primeira da minha vida. Uma violência desproporcional contra poucas pessoas que estavam apenas bloqueando uma rua. Cagalhona que sou, fugi da manifestação quando a segunda bomba foi arremessada. Quando consegui notícias do colega, já no fim da noite, ele disse que tinha ficado até o final e que estava tudo bem, só tinha sido atingido pelo estilhaço de uma bomba que estourou perto dele. Mostrou o talho na perna e eu ri: “olha aí as cicatrizes de guerra!”.
Pessoas de esquerda ou democratas de forma geral se perguntam: como foi que deixamos o golpe acontecer? Desde que o golpe começou a ser articulado, tivemos diversos atos em defesa da democracia. Fechamos ruas, fechamos estradas, queimamos pneus, tomamos bombas, assistimos e ministramos aulas públicas e formações e ainda fizemos um pouco de música – sem perder a ternura jamais. Por mais apoio que demonstrássemos à democracia e à permanência de Dilma Rousseff, democraticamente eleita, na presidência, nossas manifestações não valeram de nada, e olhando agora, a momentos de ver o golpe consumado, o motivo parece simples.
Não deixamos o golpe acontecer porque nunca esteve nas nossas mãos evitá-lo.
“Deixar acontecer” não implica apenas responsabilidade, mas sobretudo poder. Que poder nós temos? Fizemos aquilo que sabíamos fazer: elegemos representantes e quando a eleição não foi respeitada manifestamos contrariedade de diferentes formas. Em nossa ingenuidade, acreditamos nas instituições e na democracia. O que mais poderíamos ter feito? Sequestrar figuras da política e torturá-las em live streaming até que a normalidade democrática fosse restabelecida? Marchar até Brasília e crivar o Planalto de molotovs? Uma greve geral da classe trabalhadora parece uma estratégia mais plausível, mas para isso precisaríamos de uma consciência de classe que ainda não aprendemos, ainda não temos, e a ideologia hegemônica colabora pra que assim permaneça.
E talvez por isso o golpe esteja sendo efetivado. Porque quem tem o poder nas mãos sabe que nós vivemos num simulacro de democracia e apenas permitiu que brincássemos de ter direitos por algum tempo. Começou a perder a graça essa gente preta e pobre tendo um maior acesso (ainda deficitário, com certeza, mas já incomparável à realidade de quatorze anos atrás) à saúde, à educação, aos aeroportos que agora até parecem rodoviárias!, à moradia e demais direitos que teoricamente seriam básicos mas na prática são restritos a determinados setores da população.
Então se começou desrespeitando o direito mais simbólico de todos: o do voto. Simbólico porque é um dos poucos que ignora teu grau de escolaridade, a cor da tua pele, a tua renda mensal. Teu voto vale tanto quanto o de qualquer outra pessoa. Ou valia, quando era respeitado. E é justamente a parcela da população que não tem qualquer outra forma de expressão além do voto que esse golpe deseja calar. 54 milhões de diferentes pessoas elegeram o plano de governo de Dilma Rousseff, mas parece que isso pouco significa. O “argumento” do senador Aécio Neves, derrotado nas urnas e um dos articuladores do golpe, demonstra bem a nova lógica que se instaurou: “Dilma não cumpriu suas promessas de campanha, e vitória nas urnas não pode ser usada como argumento”. O crime de responsabilidade, única justificativa constitucional para o impeachment, nem entrou em questão, talvez por não haver forma de prová-lo, já que tudo indica que ele não existiu.
Se nos perguntamos por que deixamos isso tudo acontecer, por que deixamos chegar a esse ponto, é devido a um último apego à ilusão de que temos algum poder. Não temos. Nunca tivemos. Num simulacro de democracia, com uma mídia manipuladora que chama de “Brasil” manifestantes a favor do impeachment e de “apoiadores de Dilma e Lula” manifestantes a favor da democracia, com uma segurança (?) pública que trata manifestantes de diferentes formas a depender da cor da camiseta (ou da pele), nunca coube a nós deixar ou não deixar acontecer o que quer que seja. Quem articulou o golpe sabe disso e se aproveitou muito bem dessa situação. Podemos jogar a culpa nas pessoas que vestiram verde e amarelo ou na fragmentação das que vestiram vermelho, mas no fundo todas fomos espectadoras, mais ou menos ativas; nunca protagonistas.
Foi Olívio Dutra quem disse, na campanha de 2014, que “precisamos ser sujeitos da política, não objetos”. O golpe nos objetifica. Ou talvez apenas escancare o que os direitos conquistados (ou gentilmente cedidos?) nos últimos anos conseguiram mascarar: não decidimos nada, não podemos nada. Num contexto em que os direitos da autoridade máxima do país são desrespeitados na base do canetaço, o que resta para os nossos?
Eu queria conseguir finalizar com uma frase de efeito e esperança, possivelmente fazendo referência à força e à garra da (ainda) presidenta Dilma Rousseff, que enfrentou de cabeça erguida por horas a fio mais um julgamento injusto e inútil, visto que a condenação já estava decidida antes mesmo de seu início. Talvez essa frase final me falte porque o mais difícil de tudo é justamente pensar em como essa situação termina. Com resistência, me dirá a companheirada de rua – enquanto a Força Nacional chega a Porto Alegre para “dar um reforço” na situação de caos da “segurança pública”. Ora, se Dilma Rousseff resistiu tanto, que direito temos de desistir? O que dói é pensar que, assim como sua resistência se revelou inútil, muito provavelmente a nossa também se revelará. Enquanto resistimos e tomamos chapuletadas diárias em nossos direitos, parece pouco esperar que a história a longo prazo coloque os pingos nos is. Mas, na conjuntura atual, o que mais podemos fazer?