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A MODERNIDADE
A cidade vai nascer,
planta
de uma semente que antes aqui
inexistia.
A cidade é a ciência
que imaginou um dia
florescer em frutos sonoros
concretos.
A cidade, insatisfeita
deslumbra-se
com sua diversidade.
Se em uma hora ela está
doente,
noutra,
transpassa sua alegria.
Cresce o homem de prováveis sonhos
habita a cidade que o sorve
e habita o homem que nela sonha.
Um deus precário,
o mito necessário,
o tempo presente
são seus temas.
Se um homem aprisiona
a cidade
trava-se a luta.
Que linguagem se constrói
no conflito?
A natureza
ou a multiplicidade?
Se um homem
enfrenta a cidade,
a cidade o afronta.
A luta é devastação, é drama.
O homem não deixa
pedra sobre pedra.
Decifra-se o signo.
Destrói o mito, ou
legitima-se a fábula.
O homem, a cidade.
Um de vós é alegoria.
*
O HOMEM
Hoje
a difícil face
com raríssima beleza
surge do concreto com fome
e devora a imagem.
Come outro húmus,
não tão vegetal
como a terra de que és feita
porém,
dele se extrai a transparência
das fontes claras.
Para além do corpo
e da morte,
travo uma luta
contra a cidade e seu tempo.
Sei que nela sou fábula
e ela em mim alegoria.
O seu dia, a cada manhã
se repete novamente igual.
Há fábricas, cafés, máquinas
trabalhando, vendedores, postes
elétricos e intermináveis ruas.
Todos os elementos
traduzem sua fala,
mas não a decifro.
E nesta luta para traduzi-la,
me perco e confundo.
Se construo o mito,
qual de nós é o nada
e o outro tudo?
*
A CIDADE
Em mim tudo foi inventado.
O primitivo e o moderno.
Sou sem nexo,
inexorável.
O homem não me vence,
tampouco eu a ele.
Na batalha diária que
travamos,
recrio-me
no amálgama
de seu amor.
O homem não me vence
tampouco eu sua velocidade.
Constrói-me forte e armada.
E batiza-me de morada,
poço, labirinto, vã.
Se sou sua medida
seu limite
sua fonte
porque me queres subjugada?
Nele tudo são signos.
Busco, como ele
o começo do tempo
e seu fim.
Nada alcançamos na construção
que erguemos,
nos dias que se vão…
Fatigados
Reelaboramos os temas,
as perdas, as violências
que nos impomos e sofremos.
No entanto, agora na tarde,
quando surgem inesperadamente
as sombras da noite.
Sei que o homem
que fabrica os ritos,
trafega-me alucinado.
Sei que em suas faces,
os sinais de um deus precário
o denuncia, e o mantém
mecanicamente engendrado em mim.
E surpreende-me o homem
ao final de seu dia.
Como se nada em comum
tivéssemos,
depois de tão árdua luta.
Desliga-me o homem,
de sua tão comensurável vida.
Sonha a fábula possível,
o arquétipo da modernidade:
onde tudo é alegoria.
A cidade que no homem
adormece,
em mim se esquece e permanece
acordada,
noutro homem, noutro tempo.
O mito não se desvenda.
Na alvorada,
tão breve
como a existência,
a claridade derrama-me sua luminosidade.
Sei que, um dia, seremos pó,
que o vento dispersa.
Saberei que existi
e percorri distâncias.
Construí um fragmento de
memória
limo e lama.
José Couto
Poema na voz da poeta Marta Aguiar Dos Santos