Uma poesia que vibra em ritmo e leis próprias. Tão original seu som. Lembrando sempre um pungente mantra volátil. Sua mensagem é autêntica. Palavras em uníssono, formando cânticos, quase uma experiência epifânica.
Por trás da beleza e musicalidade de seus versos, um mundo ora triste, ora de alaridos, povoados de absurdos e contradições cotidianas, que reverberam no vazio imutável da nossa condição precária de ser, encontrando ecos em nossa sensibilidade. Mesmo assim, uma poética infinitamente impregnada de humanidades, uma visão apaziguadora, a desconstrução do mito, para além das máscaras, a desnudar e revelar com refinada contundência, o que de melhor podemos refletir. Imprescindível ler Fabíola Mazzini Leone.
Vida abstrata ou quatro elementos
Ao vivo não cabe evadir-se
Ao vivo do dia-a-dia, alegoria
De zumbi zanzando terral aqui
Só cabe estar, as algemas em si,
Preso à terra, presença irrefutável.
Ao vivo não cabe ilhar-se
Ao vivo do dia-a-dia, agonia
De náufrago delirando céu à vista
Só cabe estar, as amarras em si,
Solto ao mar, vazante irremediável.
Ao vivo não cabe imobilizar-se
Ao vivo do dia-a-dia, ventania
De ar rarefeito atravessando fresta
Só cabe estar, as garras em si,
Uivo aos cantos, asa indelével.
Ao vivo não cabe queimar-se
Ao vivo do dia-a-dia, energia
De fogo informe fulgurando força
Só cabe estar, as labaredas em si,
Acaso ao sol, vitalidade consumível.
de brisa
ela anda pela rua como se não fosse
tempo de dedos crispados
ela em pausa:
bêbados ficam lindos
se sozinhos com o copo
há um som eterno de vidro transparente
ela é tão visível ao sol:
díspar da silhueta, ossos rijos
a vida encontrando consistência
mas eu busco:
mais do que o aspecto sadio
um vazio em seus olhos
como a metade consumida do copo
disso eu retiro meu torpor:
seres humanos se resumem a quem tem ou não
joelhos para se deslocar
sorrio
Poema carnal
Plexo:
a vida é carnificina
Meu peito, uma ninharia
Ria, ria da poesia
que emudece
O céu, bocarra aberta,
come toda crença e senão
O espírito da poesia bate na cara
da tarde tangerina e das aves que aqui gorjeiam
O poema tem sexo
e copula em pleno verso
Sub real
a vida é trem no trilho
da fome do maquinista
e da mulher dele arisca
como um cão a esmo
a vida é rio no sol
da nuca do garoto
e da garota dele morta
como um peixe no Tietê
a vida é luxo no arrebol
da glória do dinheiro
e do dono dele ileso
como um herói de TV
a vida é água no olho
de gente como eu ou você
e das mucosas nossas doridas
como um canto de memória
água peixe olho trem
Buñuel pisava na estação
e sabia palpitar seu fim
como os olhos de um cão
devia saber da gente
e sabia regiamente do peixe
sob o travesseiro do enredo
despiste do dia-a-dia
nesta cidade passada pela água
cidade passado de 34 quadros
nos segundos do relógio na
parede dali
Em meu corpo se fez manhã
Decifrando amarelos e azuis
Abrindo as janelas ao sol
Nenhum silêncio
Nenhum e-mail
Nenhum amor me aniquilará
Estou deitada na pedra ancestral
Quarando a alma
Por que só sobrevivo a adeus de amor em Vitória
Para Amylton de Almeida
O minério no pulmão
O céu conturbado
De helicóptero:
A palavra áspera
Inócua no poema
(diante de seu ritmado adeus de miss
ensaiada pela mãe desde criança
a dizer que prefere flor de plástico porque dura mais)
Meu coração na mão
No azul do céu de disfarçada fuligem
O grande ataque e copos quebrados
Um a um sem trilha sonora
Eu sofrendo mínima
Nessa cidade que vai dar no mar
Mais salgado que minhas lágrimas
A pequena ilha a imprimir a dor
Em anúncios luminosos, batida policial
Enchente, gente dormindo na rua
Noiados no farol, navio e agonia da brisa
A ponto de minha anestesia não saber
Se sofrer existe
Na aspereza da ponte
Onde todo dia alguém se suicida
tal solitário caçador
o louco vai estar do outro lado do rio
na margem distante e sob uma árvore
num rompante o louco vai rir e rir e rir
a beleza inacessível de chapéu sobre os olhos
fosse ele mulher, rasgaria o vestido
o louco virá do sonho, as vestes sombrias
da alma pisando a terra
dos braços cingindo o vácuo
o louco que não procura ninguém
ao anoitecer as palavras do louco se transmutarão
em pedra de saudade
e ele cantará o silêncio de deixar gente em paz
ele no frio do saber fechado que nos parece morte
sem fundo
a noite esvai
o abismo
o passo erra
eira e beira
rui o tempo
por quê
se é sombra
a certeza
para o fim
diz a vida
precisamente
moto-contínuo
o terror
fabrica o terrorista
o teatro
fabrica a versão
o álibi
fabrica a pátria amada
o sangue
fabrica a bíblia sagrada
o poeta
fabrica a ilíada
da perpétua dor humana
Pequena porção
o que é o espaço no falso oco de meus ossos
o que é o espaço se meus dedos tocam nuvens
o que é o espaço de uma rua se você a sabe de cor
o que é o espaço sideral da distância entre nós
o que é o espaço se a casa é de papel
o que é o espaço se seu abraço é o céu
o que é o espaço do olho da mulher de véu
o que é o espaço que a bala traça antes de matar a esmo?
se esse espaço contém dois pontos
e detém dois pontos
o espaço me deixa tonto
extensão capacidade entrelinha
cabimento medida região
espaço também é tempo
o que é o espaço de décadas em meu peito
tão ermo?
Dentro da gente é sertão
A forma encontrada
De quarar o desejo
Um dia e meio
O pelo adere
A pele
A boca adere
Melhor seria um barco
À deriva
pequeno poema para emudecer o amor
vez por outra, cansada de seu desprezo,
eu decido aniquilar, como o Deus insano faz.
a crueldade necessária para esmagar uma barata,
uma borboleta, seu sorriso deslumbrado de si
é a mesma. o quase esquecimento é que liberta.
pequenas ações, como um bicho fascinado
se aprendesse as letras. eu tão em mim.
pequeno coração cetim punhal foto manchada
de traça. esta terra é nua e devastada. é ermo o amor. vez por outra
o bardo coração não canta. o silêncio gasta-me as horas livres.
só sei de mim, sem a suposição
de semelhanças no fundo.
Confira abaixo a interpretação de Caê Guimarães:
Caê Guimarães, um mestre no ofício. Salve! Obrigada pela leitura toda beleza e força que você fez do Pequeno poema para emudecer o amor. Mara Coradello, muitos vivas e bravos ao Sarau Feminista.pequeno poema para emudecer o amorvez por outra, cansada de seu desprezo,eu decido aniquilar, como o Deus insano faz. a crueldade necessária para esmagar uma barata, uma borboleta, seu sorriso deslumbrado de sié a mesma. o quase esquecimento é que liberta.pequenas ações, como um bicho fascinado se aprendesse as letras. eu tão em mim. pequeno coração cetim punhal foto manchadade traça. esta terra é nua e devastada. é ermo o amor. vez por outra o bardo coração não canta. o silêncio gasta-me as horas livres. só sei de mim, sem a suposição de semelhanças no fundo (Fabíola Mazzini)Filmagem: Rogerio Leone
Publicado por Fabíola Mazzini Leone em Sexta, 11 de março de 2016
Fabíola, por Fabíola:
Sou uma pessoa comum, ilhada em Vitória/ES, esta cidade que tem mar, porto e muitas histórias. Escrevo por necessidade absoluta de estar inteira aqui e no mundo, junto das outras pessoas, razão de ser de toda arte.