Sobre meu pai: diálogo e reminiscências
Cavar o céu
Cavar do céu azuis
Dançar.
Dançar com o céu dos céus
um blues
Só porque é abril no
retrato
e da varanda
as quaresmeiras
azulam.
Mal entrara no carro foi logo dando a ordem:
-Pode ir desligando esse som aí, sou chato mesmo quando de carona.
-Mas nem um Tião Carreiro e Pardinho pai? Ou quem sabe um Zé Fortuna?
Esboço de riso no canto dos lábios e a resposta que queria ser ríspida, mas não era:
-Nada. Nem toque de sino de igreja chamando para a missa.
Eu, rindo por dentro. Trajeto curto, da casa ao “Supermercado do Maneco”, dele mesmo, filho único, pai de treze, neto de portugueses, comerciante nato, louro de olhos azuis, (de um azul destes que a gente não esquece mais), sempre truculento, resmungão, (se ele sabe que escrevo isso é bem capaz de me passar uma descompostura) mas, no fundo um apaixonado pela vida. Não pode ver uma mulher bonita que fica logo acesinho. (minha mãe que nem sonhe!) Já passou uns bons apertos por isso, que sei por terceiros, mas nunca tive coragem de abordá-lo sobre. Com mais de 70 ainda acorda às 4 horas da manhã para “tirar leite” e fede da mesma bosta de vaca que fedia na minha infância. Penso que cheiro acostumado é cheiro bom. Eu não o saberia sem esse odor de curral impregnado.
Numa curva mais acentuada vem logo a reclamação:
-Vê se dirige mais devagar senão apeio aqui mesmo e vou a pé.
“Hoje ele está se superando na chatice!”
_Que é isso pai! Foi só uma curvinha mais acentuada…
Ele é assim: homem de um ritmo só, gosta que respeitem o quadrado em que vive, não suporta aglomeração, não participa de festa, tem horror a música alta, não compra fiado, não tem vícios, se bem que fumou, até ali pelos 30, religiosamente dois cigarros de palha por dia, após o almoço e após o jantar, estirado de barriga para cima no gramado da nossa casa de roça.
Depois que mudamos para a cidade, entretanto, perdeu o hábito de picar o fumo e enrolar a palha, faltara lhe decerto o incentivo do céu azul com suas nuvenzinhas brincalhonas ou a beleza das primeiras estrelas vistas da escuridão.
Nunca bebeu e nem deixou entrar em nossa casa alguma bebida alcoólica, com raríssimas exceções para uma “caracu”, mas só em caso de precisão medicamentosa.
Kardecista, conquistou minha mãe, católica e beata daquelas de fazer longas vigílias, não faltar à missa, coroar Nossa Senhora e ir regularmente a romarias à Aparecida do Norte, recitando-lhe a prece de Cáritas.
E como se adivinhasse meu pensamento sobre sua chatice…
– Hoje estou rabujento mesmo!
Olho-o com o canto do olho direito. A roupa velha assenta-lhe perfeitamente, como se houvesse entre pele e tecido uma simbiose. Coisa mais difícil é fazê-lo desprender desses”trapos”, que o diga minha mãe! luta de uma vida inteira! Ele faz birra para não usar roupa nova e só cede quando não tem mais solução. No passado só vestia calças feitas por uma costureira de nome Isabel. Dizia que só ela acertava o corte, e usava até não ter mais lugar pra remendo. Foi uma luta convencê-lo usar calça, camisa e ceroulas industrializadas.
Vez em quando tem suas tiradas de humor, porque afinal ninguém é cem por cento mal humorado: “Agora vou dormir, se a Dilma precisar de mim, diga-lhe que estou em uma reunião com o Lula.” Gosta dos presidentes e de fazer pilhérias com eles. Para ele JK é imbatível.
Ciumento, já quis passar a Kombi por cima de um meu pretendente que se pregava feito poste à esquina de casa, depois andou dizendo que ia dar uns tiros no sujeito. Depois não teve jeito e a contragosto aceitou o namoro. Aí, eu não quis mais. Era só capricho da meninice. Queimou um Aghata Cristhie com o qual o tal me presenteou e deu sumiço a uma gargantilha dourada da mesma procedência. Em todo caso era ordem de Pai João, aquilo era feitiço, precisava ser desfeito. Oh dó! da gargantilha não, porque nunca liguei para esses mimos, mas do livro, logo eu que era já fissurada em leitura por culpa e incentivo dele mesmo, que concluiu o quinto ano de admissão e conservava em casa uma escrivaninha recheada de bons livros: Machado, Olavo Bilac, Manoel Bandeira, Cassimiro de Abreu…Tenho um “diferente” que conservo ainda comigo “Memórias Póstumas” não a de Brás Cubas, mas aquele polêmico do Chico Xavier sobre Humberto de Campos. Tomei um baita susto quando o li por volta dos 8 anos: morto voltava, falava com a gente. O meu pavor da morte terminava ali.
Não tinha dúvidas que o quinto dos infernos era o lugar que ele mais conhecia, pavio curto, mandava todo mundo pra lá. Enquanto lia da sua escrivaninha procurava uma pista para tal lugar (Oh santa inocência!) Aquilo me impressionava porque minha mãe se benzia e chamava pelos santos todos, quando ele evocava o quinto dos infernos. Dia destes lembrei-me de dizer a ela que o tal quinto não passava de um imposto que revoltava os mineradores. Rimos juntas.
Percebo que o ar condicionado está incomodando-o. Desligo e abro os vidros. Ele não diz nada, seus olhos azuis estão agora longe, perdidos entre pastos e vacas, viajando pelas terras que comprou à custa de muito suor e das quais nunca admitiu vender um alqueire sequer e às quais muitos ainda vão sendo anexados com o incentivo do terceiro filho, esse sim, homem, seu braço direito. Eu, a primogênita ,em outro tempo era quem levava sal ao gado, limpava as cocheiras, ajudava no corte e moagem do capim napiê, apartava as vacas, carregava lata d’água na cabeça para refrigerar o motor da máquina de beneficiar arroz, abria a venda quando ele estava na cidade e algum conhecido da região chegava precisando de um mantimento mais urgente. Só não conseguia pesar os grãos devido à minha pouca idade e falta de força. Tinha gente que comprava de uma vez só trinta quilos de arroz, vinte de feijão, dez de açúcar…Mas, eu ficava ali de olho na balança e ninguém me passava a perna. Se tinha dúvidas do nome e ficava com vergonha de perguntar, descrevia depois para ele o sujeito e sua monta com tanta perfeição que não havia erro. Com raríssimas exceções o nome era sempre de alguém de alguém: Joaquim do Danca, Zé do Beto, Brás do Tião Carneiro, João de Deus…
Por volta dos meus seis anos chegou em casa com quadro negro e giz. Eu devo ter arregalado um olhão porque ele sorriu e disse: -Agora que eu quero ver se você é boa de aprender mesmo!
Cansado, à noitinha, enquanto jantava ensinou-me as primeiras letras, depois as sílabas e mais tarde as palavras, de modo que quando me matriculei na Escola Estadual São José do Pantano, no arraial de São José, a légua e meia de casa ,eu já estava praticamente alfabetizada.
Tempos difíceis, anos 70, estradas ruins, intransitáveis quando com chuva contínua, caminhão de leite encravado, bota de cano alto, barro, barro, barro, noite e dia, dia e noite, gado berrando no curral, enchente à porta de casa, jacaré rondando, vaca dando cria, menino nascendo, porco morrendo e o grito ecoando, ecoando para sempre no ouvido… carro de boi, almoço antes do meio-dia, jantar à luz de lamparinas, lenha encharcada e a gente feito pinto molhado voltando da escola tão longe..O circular demorou a chegar por aquelas bandas. Foi num dia que “saltei” dele na frente da escola sem ter parado de todo, e me machuquei um pouco, que ele fez ali sua primeira aparição. Eu estava lá na segunda série, primeira fila, próximo à porta, meio amuada. Veio em roupa de domingo, a pé, no meio da tarde, jeito roceiro, encabulado, saber se eu estava bem. Aquilo era carinho que eu não podia ainda compreender.
Nunca me abraçou, nunca me beijou, nunca me presenteou (não era costume) mas, sempre me acarinhou com seu jeito de olhar mais que azul, com seu espírito vivaz e principalmente me fez sentir protegida por sua retidão ética.
Lógico que nem sempre foi perfeito, suas lições eram violentas. Levei muita cintada na perna. Uma vez ele veio me avisar que uma galinha chocava numa moita de barba de bode uns 18 ovos, e deu ordens para que eu não mexesse em hipótese alguma no ninho senão ia gorar os ovos. E o que foi que eu fiz? Quando ele descobriu minha arte agarrou-me pelo braço e da beira do ninho foi quebrando os ovos, agora gorados ,um por um em minha boca: -Isso é para você aprender a me obedecer!
Há lições que são para toda vida, violentas ou não.
-Pára por aqui mesmo, até logo, muito obrigado.
Curto e prático.
-Cuidado aí pai, não abra a porta agora não, olha o carro…
Agora nossos dizeres são só mesmices, conversamos sobre o tempo, a colheita, o dinheiro curto,o desemprego. Há tantos desdizeres, que nem sei se o que quero lhe dizer, deve ser dito. Fica mais cômodo não dizer. O silêncio nos diz. Afastados pelos anos, pelo gosto, pela vida, gerações em conflito, deixamos ficar entre nós um respeitoso mútuo calado entendimento que não me lembro de ter visto crescer e que entretanto se encontra por demais enraizado.A nossa fala acontece sem palavras, sem perguntas, sem respostas, sem cobranças. Falar para quê se o aval para que eu voe ainda leio nos seus doces azuis de nunca perguntar para onde?
Nunca filosofamos nem nos falamos sobre Sartre ou Spinoza,(sua alma ainda me foge arisca como as seriemas da nossa terra) mas ,ele sempre me diz por atos, que a liberdade é a única condição para se ser feliz, desde que ela não fira a nós e aos outros, e que cada um deve aprender a construir por si mesmo, e desde cedo, seu par de asas. O labor se verá na tessitura.
Ano que vem, no seu aniversário, haveremos de estar novamente reunidos à mesa como na Grande Ceia. Farei a leitura do Evangelho. Ele dirá mais tarde à minha mãe, com certo orgulho, que leio muito bem, mas não o confessará a mim mesma, por falta de jeito. Nesse dia haverá cumplicidade em nosso olhar.
Trilha sonora para acompanhar a leitura de Sobre meu pai: diálogo e reminiscências:
Imagem ALPHAVILLE
Direção: Jean-Luc Godard