Eu me lembro

 

O vulto do pai está na árvore
Um pouco como no filme de Fellini
Só que mudo

 

Você não concorda,
Mas pra mim Amarcord é a amargura do pai
Tantos anos ganhando as canecas em agosto
O nome trocado

 

Amarcord é um coração enorme
O pai suspenso no céu ao entardecer
O pássaro que ele não foi
As duras penas da vida
Pisadas no sorriso de lado 
da mãe, no salário de merda

 

O que quer o nosso pai é voar
Sem tempo ou necessidade
Pelo amor ao céu, à donna
Bela como a luz do sol 
E com o vício da vida

 

Amarcord não é corda
Fechando a gaiola, nem asa quebrada
Amarcord é quase amar o coração
É dar o perdão pro pai 
E crescer

 

Fabíola Mazzini Leone

 

*

 

Ressonância

 

Flagrância:
A essência da infância 
Na total ignorância
Dos dissabores da vida
Pregnância 
Distância:
Agora ânsia 
De dias melhores
Pura militância 
Da pessoa anciã

 

Silvia Maria Ribeiro

 

*

Filamento de pai

 

É certa a presença 
do astro rei
mesmo se esparramada
sua sombra

 

é certo que ainda giro
na órbita do seu amor.

 

Joelma Bittencourt

 

*

 

MEU PAI, DÁ-ME OS TEUS VELHOS SAPATOS MANCHADOS DE TERRA…

 

Meu pai, dá-me os teus velhos sapatos manchados de terra 
Dá-me o teu antigo paletó sujo de ventos e de chuvas 
Dá-me o imemorial chapéu com que cobrias a tua paciência 
E os misteriosos papéis em que teus versos inscreveste.

 

Meu pai, dá-me a tua pequena chave das grandes portas 
Dá-me a tua lamparina de rolha, estranha bailarina das insônias 
Meu pai, dá-me os teus velhos sapatos.

 

Vinicius de Moraes

 

*

Abença pai

 

Pai, em vão busco o sopro que acende a vela de tua ausência 
Restaram apenas os restos de pôr de sol e de lua dormitando em tuas pálpebras

 

Abença, meu pai
Hoje um rasgo de saudade 
Veio abrir esse dia amarelado.

 

Luiza Cantanhêde

 

*

 

A terceira mão

 

era um menino 
quando vi um homem
desferir dezessete facadas
sobre o abdômen do meu pai.

 

minha mãe, seminua, corria 
pela Avenida Benjamin Constant
para socorrê-lo.

 

quadros de Chaplin, 
um papai noel de brinquedo, 
vaidades despedidas
na subpele do fogo.

 

UTI, balão de oxigênio… 
meu pai recebeu nova vida.

 

alguns anos se passam 
e dezessete facadas 
rasgam outra vez
a pele do meu pai
na forma de uma hérnia.

quando uma lágrima quase 
me escorrega o rosto, 
numa cama de hospital público, 
sobre as mãos unidas de pai e filho,
uma terceira mão se apresenta:

 

sinto o perfume da barba feita de meu pai
nos pelos e linhas da mão de Deus.

 

Carvalho Juniorr, do livro inédito “No alto da ladeira de pedra”

 

*

pouco…

 

qual tempo rodinhas faziam seguras infância pedaladas
alegria cordas teu violão cantavam
dança teus braços passos mostraram como seguir
pouco…

 

deste na vida o que dela sem querer te deu
raros pedaços de tempo pai fostes meu
ausente presença aprendi crescer
pouco…

 

vazio te fiz perdoado
longe te fiz amado
vida tua filha tanto perdeu
pouco…

 

tão pouco seu lado ombro acolheu
o muito doída ferida 
do tão pouco seu 
que pai fostes meu
pouco…

 

Flavia D’Angelo

 

*

Para meu pai (in memoriam)

*

Todos os dias rego
Flores 
Azuis
Das janelas 
Fechadas
Do
Quarto

 

O sal no concreto é liquidez que respira

 

Elke Lubitz

 

*

 

__ O DIA DO PAI ___

 

O sofá, o jornal,
O olhar, os óculos,
A tardinha oceânica
Grudenta de cansaços
E cigarros de escritório:

 

– Angustia submersa
De poema estrangulado,
Calado nas guelras do peito. –

 

Abria-lhe a cerveja,
A marca de sempre,
O chiar da espuma
E o gesto de cabeça
Para o gole primeiro:

 

– Angustia submersa
De poema estrangulado,
Calado nas guelras do peito. –

 

A soberana gota no bigode,
Símbolo de uma sabedoria
Que varava os cadernos,
Esmiuçava as metáforas,
Questionava as vírgulas,
Esculpia silêncios no ar
E os batizava de Respeito:

 

– Leia!

 

– E aquela agonia
De boca de peixe
Escorria peito afora
Inundando o mundo:

 

– Razoável! – Dizia ele

 

– Bastava,
O menino virava poeta
No coração da noite!-

 

Wander Porto