Eu teria meia dúzia de motivos plausíveis para justificar ter ficado sem escrever nas últimas semanas, mas o maior deles foi a necessidade de um tempo para assimilar isso tudo que andou acontecendo. No momento mesmo em que escrevo, sei que já estou me tornando desatualizada. Michel Temer está há apenas uma semana na cadeira da Presidência da República e já deu canetaços que equivalem a décadas de retrocesso. Perdida no meio de tantas (más) mudanças e informações, só posso apresentar alguns pontos que têm me ajudado a me localizar e a não sucumbir no meio dessa confusão.
Reelegemos Dilma Rousseff para a Presidência em outubro de 2014. Isso é muito importante de ser lembrado porque há quem insista no argumento “não fui eu que votei no Temer heheh”. Sim, Michel era o vice da chapa, e era exatamente este o lugar que ele deveria ocupar. Além disso, embora seja um nome e um rosto que aparecem na urna, o que elegemos de verdade é um plano de governo. É este que é apresentado, por exemplo, nos debates e nos comícios. Em momento algum Michel pretendeu dar continuidade ao programa de governo escolhido nas urnas em 2014 – o que, na minha opinião (posso estar desinformada), seria o dever de um vice. Michel, pelo contrário, sob o pretexto de economia, enxugou ministérios e atribuiu aos restantes lideranças no mínimo questionáveis. Quando o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva foi nomeado chefe da Casa Civil, por exemplo, choveram críticas a respeito da manobra política que isso significaria: como investigado na Lava Jato, a posição de ministro lhe garantiria foro privilegiado. Até o momento, pelo menos nove dos ministros escolhidos por Michel são réus na Lava Jato. A mesmísssima manobra que, quando envolvendo Lula e Dilma, era absurda e desrespeitosa, parece ser perdoável quando executada por Michel.
Sim, Michel era o vice da chapa, e era exatamente este o lugar que ele deveria ocupar. Além disso, embora seja um nome e um rosto que aparecem na urna, o que elegemos de verdade é um programa de governo. É este que é apresentado, por exemplo, nos debates e nos comícios. Em momento algum Michel pretendeu dar continuidade ao plano de governo escolhido nas urnas em 2014
Dessa indignação seletiva já podemos supor que o problema nunca foi a corrupção. Talvez tenha sido esta a legítima motivação de meia dúzia das pessoas que foram às ruas exigindo o impeachment; mas quem esteve no comando da operação que levou ao golpe tinha apenas o interesse de chegar ao poder da forma como fosse. Sem possibilidade de ganhar nas urnas (a ficha suja de Michel o impede de concorrer às eleições pelos próximos oito anos), o jeito foi espancar a Constituição e a opinião pública até que elas consentissem com esse modo ilegítimo de chegar ao poder.
Uma vez empossado esse governo ilegítimo, não demorou muito para que se revelasse qual parcela da população seria a mais prejudicada: o acesso universal ao SUS foi relativizado; programas de acesso ao Ensino Superior foram cortados; a idade mínima para a aposentadoria foi modificada. Tudo isso em uma mísera semana. Uma amostra do que está por vir nos próximos seis meses em que a presidenta Dilma Rousseff ficará afastada e veremos nosso país governado num estado de exceção no qual não temos como prever qual será o próximo direito tolhido.
Em aula pública ministrada no Parque da Redenção no dia 5 de dezembro de 2015, o cineasta Jorge Furtado afirmou que o Partido dos Trabalhadores cometeu muitos erros, e o principal deles tinha sido o de se aliar a canalhas; uma vez que o PT disse “chega” à canalhice, era o momento de voltarmos a apoiá-lo. Dizer “chega” à canalhice, no caso, significava não ter aceitado as chantagens do deputado Eduardo Cunha, que quis usar a votação do impeachment como moeda de troca para ser absolvido nas investigações da Lava Jato. Uma vez que a canalhice, com ou sem moeda de troca, conseguiu chegar aonde queria e propõe um retrocesso atrás do outro, não vejo outras opções além de incessantemente denunciar a ilegitimidade e manifestar contrariedade a esse governo que não representa o voto das urnas.
Eu poderia encerrar com um relato minucioso sobre a truculência policial nas manifestações contrárias ao golpe de Michel Temer que ocorreram na quinta (da qual participei) e na sexta (que só acompanhei pelas notícias) da semana passada, mas creio que o tema já foi muito bem explorado. Ainda mais chocantes do que os relatos são as declarações de que no novo governo os movimentos sociais serão tratados como guerrilhas.
Se, por um lado, os movimentos de rua nessa conjuntura parecem inúteis ou mesmo perigosos, por outro parecem a única ferramenta – já que mesmo o voto foi atropelado – de que dispomos para denunciar o quão absurda é a situação a que nos submeteram. Não podemos prever o que os próximos meses desse governo nos reservam, mas, de nossa parte, podemos pelo menos assegurar que a repressão e o retrocesso sejam respondidos com resistência. Se eu ficar mais algumas semanas sem escrever, pode ser por estar ocupada com isso. Ou por, mais uma vez, precisar de um tempo (de que não dispomos) para tentar assimilar a violência (física, verbal, simbólica) que estamos sofrendo.