No desfile de absurdos que temos acompanhado nos últimos dias, é difícil selecionar apenas um sobre o qual escrever. Alguns me tiraram as palavras mais uma vez (tenho passado muito por isso ultimamente), o que me fez decidir por um assunto que toca justamente nelas: as palavras. Escrever sobre as palavras pode ser um pouco menos difícil porque, devido à minha formação como bacharela em Letras e quase mestra em Estudos da Linguagem, consigo manter uma relação teórica e profissional (mas não apenas) com elas. Talvez o governo interino de Michel ainda não tenha afetado diretamente nenhuma das pessoas que me leem. No entanto, algumas medidas tomadas em relação à língua e às palavras, com forte carga simbólica, me levam a questionar as prioridades e princípios dessa atual gestão.

Tem coisas a que a gente se acostuma desde sempre e de tal modo que nos parecem automáticas, um ponto pacífico, um direito. O nome, por exemplo. Eu fui registrada como Laís quando nasci, sempre fui chamada de Laís e para mim isso nunca foi um problema. Há pessoas, no entanto, cuja relação com o nome é apenas uma dentre a série de batalhas que precisam enfrentar diariamente para serem aceitas socialmente: são as pessoas transexuais e travestis, pessoas cuja identidade de gênero não corresponde àquela que lhes foi atribuída ao nascerem. Este artigo de Berenice Bento traz algumas considerações didáticas para quem quiser saber mais sobre o tema.

Uma opção para evitar que elas sejam constantemente constrangidas é o uso do nome social: pouco antes de ser afastada, a presidenta Dilma Rousseff sancionou (tardiamente, reconheço) o Decreto nº 8.727, que garantia o direito ao uso do nome social em órgãos públicos federais para pessoas transexuais e travestis. Um justo reconhecimento da dignidade de pessoas que são excluídas e marginalizadas pelo simples fato de não ser exatamente o que se espera delas. Um ato sobretudo simbólico, afinal, que diferença prática faria na minha vida chamar determinada pessoa de Maria ou de João? Na minha vida, diferença nenhuma, mas, na vida da pessoa transexual ou travesti, pode significar um momento de humilhação, ofensa, revolta e uma série de outros sentimentos desagradáveis aos quais não faz qualquer sentido submetê-la. Ou, pelo menos, não faz para mim e para quem sancionou ao Decreto.

Parece fazer para o ministro do trabalho nomeado pelo presidente interino Michel, Ronaldo Nogueira, que, junto a mais 28 nomes, apresentou um Projeto de Lei que visa derrubar esse direito. O projeto, que pode ser lido integralmente neste link, se justifica classificando o Decreto da presidenta como um “abuso do poder regulamentar” (que, não sendo da área, não me sinto capaz de concordar ou discordar), sem tocar em momento algum na questão da importância e do significado do nome social: uma justificativa padrão e supostamente indiferente que serviria para qualquer outro projeto. Uma leitura nas assinaturas, porém, causa calafrios: identificamos pelo menos um deputado que se identifica como “pastor” e outro como “missionário”. Além da imediata associação entre os interesses da bancada religiosa e a diminuição dos direitos da comunidade LGBT, chama atenção o nome usado pelos deputados. Uma rápida pesquisa no Google indica que nos nomes de registro dos referidos não constavam as palavras “pastor” ou “missionário”, mas nada os impede de utilizá-los enquanto representantes políticos; por que então as pessoas transexuais e travestis não podem utilizar o nome que lhes convém durante o exercício de sua cidadania ao frequentar órgãos públicos federais? É uma pergunta para a qual não vejo resposta (se alguém conhecer, por favor, me aponte) que não caia no moralismo, no preconceito e na imposição de um modo padrão de ser e viver.

No dia 1º de junho, alguns portais de notícias divulgaram a informação de que Michel orientara profissionais da Empresa Brasileira de Comunicação (EBC) a não mais usarem o termo presidenta para se referirem a Dilma Rousseff, mas, sim, presidente. A flexão de gênero no termo tem gerado polêmica desde que Dilma Rousseff assumiu a presidência em 2011 e, assim como no caso da resistência ao nome social, não parece ter maior argumento do que o preconceito: ao contrário do que afirmam pessoas desinformadas ou mal intencionadas, presidenta é palavra dicionarizada desde o século XX e aceita mesmo pelas gramáticas mais tradicionais da língua brasileira. Não foi uma imposição nem uma invenção de Dilma Rousseff. Esta sempre demonstrou sua predileção pela palavra flexionada, o que marcaria linguisticamente a chegada, pela primeira vez em nosso país, de uma mulher à presidência da República. Parece que o fato de ela ser mulher, no entanto, só interessa no momento de xingá-la ou fazer adesivos humilhantes com sua imagem: reconhecê-la enquanto presidenta não alteraria a vida de ninguém, mas aparentemente gera um incômodo com o qual Michel não sabe lidar.

Impor o tratamento presidente a uma mulher que declaradamente prefere ser chamada de presidenta é uma forma sutil de violência e de apagamento de sua identidade feminina. Derrubar um decreto que assegura o nome social às pessoas transexuais e travestis caminha na mesma direção, mas com maior intensidade ainda: é negar completamente suas identidades e reposicioná-las dentro de um rótulo que lhes foi externamente atribuído, que não as representa e que muitas vezes as machuca.
blockquoteE tudo isso por quê? Ora, para mim está claro que um dos interesses desse governo interino é o de recolocar as pessoas nos lugares que julga lhe pertencerem:

A mulher, ainda que seja uma presidenta democraticamente eleita, não deve ser reconhecida como tal; a pessoa transexual ou travesti, ainda que goze do direito de acesso aos órgãos públicos como qualquer outra pessoa, não pode fazê-lo sem passar por uma humilhação.

Pelo menos duas classes significativas da população foram linguisticamente violentadas nos últimos dias. E ainda temos pelo menos cinco meses desse (des)governo. A resistência, que vejo como único modo de lidar com o golpe, passa também pela esfera da língua: de minha parte, seguirei chamando Dilma Rousseff de presidenta – afastada, mas ainda presidenta. E com as palavras que me restam, convido todas as mulheres, a comunidade LGBT e qualquer pessoa que sinta seus direitos diminuídos por este desgoverno a me acompanharem nesse sutil e simbólico ato de desobediência civil.