*
VIII

15233761_1562764623737380_1037605132_o___ BUÑUEL ____

O rito da vida
E o grito sem voz,
A ida sem rumo
E a casca da noz,

A volta do mundo
E o corpo em cruz,
O morto de medo
E “O cão andaluz”,

O vaso de vidro
E o gesto atroz,
A corda na forca
E a vida em retrós,

O furo na folha
E o cisco no olho,
O beijo na cona
E o olho no furo,

O tombo do alto
E o salto Parkour,
A manhã que morre
E a Belle de jour!

O filho da puta
E a Viridiana,
A filha na luta,
Tristana, Tristana,

O passo do triste
E o peso do chão,
A bunda da morte
E a foice na mão,
(Johnny vai à guerra
E Os Esquecidos?
E os Ambiciosos?
E o Alucinado?
E os Orgulhosos?
-Le Fantôme de la Liberté?
-Ah, O discreto charme da burguesia
E o Obscuro objeto do desejo!)

O punhal do adeus
E o sangue dos dias,
A febre das noites
E o sonho de deus,

Na bota do tempo
O plasma dos divididos
Esparrama-se pelo asfalto,
Na boca do tempo
A gosma dos oprimidos
Sufoca o canto da contralto,

Na farsa do faz-de-conta
A semente da verdade,
Das fodas que a vida dá
Pari-se a surrealidade,

O mundo na merda
E o som de Gardel,
O susto que medra
À sombra de Buñuel.

Eu beijo a boca do não entendimento
E me encanto com os respingos da lua vadia
Sobre a tua pele de crepúsculo e vento:
Exerça-me, alimente-se da minha fantasia!

Wander Porto

*

IX

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RÉQUIEM PARA SEIS CÓRREGOS

seis córregos franzinos
seis viagens sem volta
um ribeiro lajeado
seis alvos sem escolta

seis indefesos reféns
seis caminhos tortos
um itajuíbe riacho
seis pássaros mortos

seis cânticos de revolta
seis torrentes de peçonha
seis crianças brincam
seis silêncios de vergonha

seis feridas dilacerantes
no meio da noite sem fim
seis preces lancinantes
rasgam meu pobre Itaim

seis peixes no aquário
seis esgotos pungentes
sessenta mil ratazanas
todas gordas e contentes

um itaquera itaqueruna
um ano e seis enchentes
seiscentas leptospiroses
três pontes impotentes

seis políticos de ocasião
sessenta discursos pró forma
um exército de burocratas
seis decretos seis mil normas

seis toneladas de lixo
no meio da noite sem fim
seis mil lágrimas de mães
rasgam meu pobre Itaim

um tijuco preto preto
seis favelas penduradas
seiscentas crianças brincam
seis mil aves sufocadas

seis borboletas amarelas
seis projetos engavetados
seis córregos sobrevivem
mesmo após assassinados

um negro água vermelha
seis anjos cancelados
seis emissários de bosta
seis punhais encravados

seis córregos agonizam
no meio da noite sem fim
seis gritos de socorro
rasgam meu pobre Itaim

Akira Yamasaki

*
X

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quando as evidências doem pra nascer
.
.
eu sei
eu deveria sentir mais
pela pouca utilidade das flores de sangue
que brotaram entre as minhas pernas
quando meu mundo era o porão

eu sei
eu deveria sentir mais
pela falta de cicatrizes dos anos
que perdi construindo vaidades

eu deveria ter tempo pra sentir
por aquele menino que evito ver
queimar mãos e lábios no fogo de pedra
por aquele amor que não vai se repetir
mas está marcado para não morrer

eu deveria sentir no corpo as dores do mundo
mas o que sei é costurá-las no peito
e enrodilhá-las
na granada que um dia
eu sei, dispararei

Lou Lou
*
XI

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A dança mística das sementes vermelhas no meio-fio da vida

para tomar no cuspe da índia o segredo dos assobios dos pássaros das cercas de enganos da infância. para me juntar ao abandono dos umbigos dos riachos mortos. para correr nu pelos paralelepípedos da rua Santa Cruz em finais de semana de solidão chuvosa.

para ouvir tua bolsa pele de serpente bárbara declamando Shakespeare e destelhando a abóbada celeste na explosão de orgasmos. para me esticar na grama que acolhe os alfabetos sentimentais das minhas origens.

para rasgar nas unhas do arame os calos de sangue dos pés dos meus fantasmas. para me desconhecer e me matar quanto possa da companhia dos punhetas incrédulos sem fome de travessia.

escrevo para ver meus abismos se equilibrando na dança mística das sementes vermelhas no meio-fio da vida na volta para o ninho invisível.

Carvalho Junior
*
XII

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Naquele tempo a estrada azul
ia dar no sagrado dos seus olhos
Domingueiros
Eu, sem lírios do campo ou flores de maio,
Ofertava-te meu silêncio sem reza.
Agora tenho dessa mácula de cílios nos lábios
E esse choro forte de jasmim que não venço
A estrada azul tem endereço que
Não seus olhos santificados
E me rendo a todo amor que alisei no colo
Para depois, e só depois, me acocorar num canto
Ruminando, rente ao solo, o pecado
Alguém sabe e grita que oração é infinita cura
Mas em minha boca qualquer prece
Soa impura ou tem poder de espanto farto.

Lázara Papandrea

*
XIII

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Flor Noturna

das tuas palavras
desabrochavam pétalas.
dos nossos beijos,
as mil e uma noites
e as ávidas borboletas.

dos nossos espaços
num dia qualquer
um vácuo sem fim.

de mim, sobrou o caule
de um crepúsculo
que já foi cálido

hoje, o botão fechado
deste pálido miolo
ainda sonha beleza.

di_urna divagação
de nossa flor noturna
e a não-certeza infinita
de um boca-a-boca.

Chris Herrmann Kuhn

*
XIV

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Instante

um pouco de nós é loucura
um pouco estilhaço de vida
um pouco de nós é muralha:
é falha falsa difusa
um pouco de nós é ausência
é tarde é instante
um pouco é estar por aí
nas intenções e nos gestos
(ignóbil gesto, além)
um pouco de nós é tragédia
noutro tanto
a alegria desponta
e a alma luta reluta devora
um pouco ainda é coragem
paz
demora
cansaço
um pouco tem tanta inocência!
outro tanto é a infância perdida
vadia parte
verdade vazia
e os nossos poucos, tão poucos
despertam-se em fúria
porque tudo é sempre um grande ânimo
pesado ânimo
dentro de nós.

Adriana Aneli Costa Lagrasta

Ouça o poema