Ao criador

Para as manas Eliana e Márcia

O tênue vórtice da manhã derrama sua luminosidade. O dia inicia abafado. Término de um ciclo. A urna espera o momento da cremação dos ossos. O que era pouco, ou muito, talvez nada, agora é deserto, vastidão de silêncios.

Simplesmente não existe, e, no entanto, persistente esta dificuldade de respirar, encher os pulmões, buscar oxigênio, fazer o sangue circular. Era preciso continuar a se mover, na amplitude do dia que inicia, sem as respostas: nenhuma certeza. Só a que nunca haverá.

Na memória afetiva resta, quase imperceptível, o perfume. Inteiros: o modo oblíquo de sorrir, o calor do abraço forte, apertando contra um peito ossudo, uma gratidão, uma alegria contagiante.

Os ossos que agora esperaram o momento da incineração: o consumir das labaredas. Nunca mais irão abraçá-los. Não haverá mais troca de opiniões. Nem o sentimento do mundo contido com vagar.

O chimarrão sorvido lentamente. O cheiro da erva nova se desprendendo da cuia. O café, o fogão a lenha, o saco de pano, o grão moído na hora, o pito no palheiro, a mistura de cheiros nos rodeando era tão forte, que volto a senti-los agora. Lembro de nossa conversa, que era jogada dentro. Maravilha foi ter convivido com um ser que transcendia todas as qualidades que me inspiravam.

Vertem-me, agora, sentimentos caóticos, contraditórios. As lembranças de como ela lidava com as miudezas. Os valores simples de leveza, o desapego…

Exercia o exercício excepcional de existir, transmutar.

Perdê-lo, foi ganhá-lo. Perde-lo, foi recriá-lo. Sua alegria era imaginar violinos, oboés, cítaras, harpas, flautas de pã, sons de pássaros, cristais translúcidos. Todos juntos em uma oitava acima do bem ou do mal. A lucidez amparando o melhor que emerge de cada ser. A essência jorrando bondade. A visão de um céu encharcando de estrelas, cometas. Infindáveis astros celestes, serenando o ego.

Era uma alma altruísta, sempre com delicadeza no gestual e sua voz cristalina. Porém, os acontecimentos nos empurram para seus desfechos. De precipitar,

ossos retirados do repouso eterno partem para o crepitar de fagulhas estalando juntas. Os acontecimentos nos pedem para conservar a consciência presente.

Estamos, agora, à espera das cinzas a serem depositadas na urna, que será segurada firmemente de encontro ao afeto do peito. A cerâmica será conduzida até às margens do insondável rio Guaíba. Será aberta, e as cinzas do pai que não tive, mas que na poesia, com seu delírio de sensibilidade e fraternidade, me acolheu. Serão espalhadas suavemente até que o rumor da manhã., escandalosamente azul, as disperse. E o rio, por testemunha, as trague.

Pó.

Grãos da poesia que não tive, cujo pai em seu delírio inexorável de verbos e luzes, me gerou.

Jose Couto

*Foto: André Luís Fernandes Dutra

Trilha sonora par ler essa prosa poética

Thiago Arancam – Il Mondo